
Pergunta:
Relry Alves: "Pastor Ferreira, o Luciano em uma das suas lives fez a seguinte afirmativa: "Jeová é uma farsa suméria de 5 mil anos". Por favor, o que o senhor tem a dizer a cerca dessa afirmativa?"
Resposta:
Bem, mestre. De prontidão: não, não é uma farsa coisíssima nenhuma. Como o nosso nobre Luciano não definiu a qual deus sumeriano ele se referia, irei apresentar aqui o meu esboço e irei falar a respeito das propostas que os críticos apresentam e em seguida apresentar os contrapontos. O primeiro passo que nós devemos tratar é entender que não é possível tratar disso sem tratar da chamada "hipótese documentária" ou "teoria das fontes", a origem da teoria das fontes está em Jean Austruc (1753) que propôs que havia dois nomes para o Deus hebreu de gênesis 1 e gênesis 2 (no caso, Elohim para Gênesis 1 e Javé para Gênesis 2). Julius Wellhausen, no século 20, tomou a tese de Austruc em documentos das duas fontes, que passou a quatro (J. E. D. P).
Hermann Gunkel (século 20) em "the literary form of legends" diz: "Os hebreus copiaram sob novas adaptações o Enuma Elish, Atra-Hasis, Gilgamesh e outros mitos cananeus."
Observação: as hipóteses são pautadas em deduções extraídas do livro de Gênesis. Tais documentos (hipóteses documentárias) não existem de fato, não há esses documentos.
Albert de Pury, teólogo francês liberal e organizador da obra "o pentateuco em questão", ignora a hipótese documentária. Embora defenda a redação de Gênesis para o período pós-exílico.
O primeiro passo é analisar os mitos. Em seguida, compará-los à criação de Gênesis. Por fim, avaliar as argumentações em favor da hipótese documentária.
O mito:
Enuma Elish (Quando nas alturas) - autor anônimo, século XVII - XI a.C: Before the Muses: An Anthology of Akkadian Literature (Antes das musas: antologia da literatura acadiana), Ben Foster, 1983. Conf, "O livro da mitologia", p. 188.
Principais personagens:
Apsu (pai dos deuses);
Ea (filho de Apsu, marido de Dankina e pai de Marduc);
Marduc (filho de Ea e Dankina, rei dos deuses babilônicos);
Tiamat (mãe dos deuses - Deusa do mar. Casada com Quingu, um guerreiro criado por ela);
Mummu - Neblina (Conf. O Livro da mitologia, p 188).
Estória:
"Antes da criação só existia o caos das águas dividido em duas partes: Apsu (água doce) e Tiamat (água salgada). Estes acompanhados de Mummu - Neblina (Conf. Bíblia da mitologia, p 92). Quando Apsu e Tiamat se misturaram, criaram os deuses. Porém, Apsu, incomodado com o ruído das conversas dos deuses, decidiu matá-los (matar o que ele e Tiamat haviam criado). Ea, o mais inteligente, descobre a trama e mata Apsu, seu pai, e com seu corpo, constrói um templo de água. Tiamat, revoltado com a morte de Apsu, com a ajuda de monstros, resolve matar todos os deuses. Marduc, em troca de supremacia dos deuses, mata Tiamat, rasgando seu corpo ao meio. Com uma parte de Tiamat cria os céus, com a outra parte cria a terra, dos olhos de Tiamat ele cria o Eufrates e o Tigre, dando origem a Mesopotâmia (Grego: entre rios). Depois de matar Tiamat, Marduc mata seu marido Quingu, e com o sangue deste cria os seres humanos" (conf. Livro da mitologia p. 188-189).
Interpretação dos críticos:
O filósofo da universidade de Nova Iorque, Sidney H. Hock (1902-1989), seguindo Hermann Gunkel e outros, interpretou Tiamat com תְהוֹם (tĕhōm, abismo de Gênesis 1:2). Assim, a criação de Gênesis seria uma adaptação ou uma deturpação da batalha entre Marduc e Tiamat do mito da criação babilônica Enuma Elish.
Avaliando o argumento:
1- A criação babilônica parte de algo preexistente, a saber, das águas primordiais. Já a criação em Gênesis, Deus através do ex nihilo (Latim: do nada) cria as águas.
בְּרֵאשִׁ֖ית בָּרָ֣א אֱלֹהִ֑ים אֵ֥ת הַשָּׁמַ֖יִם (Gen. 1:1 BHS).
2- Problemas filológicos: Alexander Heidel, Kenneth Kitchen e John Skinner argumentam:
a) Tĕhōm (תְהוֹם) não é feminino (como é o caso de Tiamat), é comum;
b) Não poderia ser transportada para o hebraico sem um sufixo feminino. Teríamos que ter um sufixo feminino para filologicamente afirmarmos que tĕhōm seria uma adaptação de Tiamat;
c) A gutural ה infixada no meio da palavra nunca foi explicada pelos críticos (conf. Hook, 1983, p. 119);
d) Os costumes dos adaptadores dos mitos eram feitos pelo alongamento do mesmo, e não o contrário. Ou seja, se houvesse uma adaptação, ao invés deles tirarem partes da palavra Tiamat e criar um tĕhōm, eles enfeitariam o termo. Este era o costume da época;
e) Tĕhōm (תְהוֹם) tem sua raiz semita comum no Ugarite, isso no segundo milênio antes de Cristo. Logo, filologicamente falando, o termo não tem nada a ver com Tiamat. Aqui temos uma falácia filológica por parte dos críticos;
f) Tĕhōm (תְהוֹם) aparece de forma clara referindo-se as águas ou mar no contexto imediato de Gênesis e em outros textos (1:2, 7:11, Dt 8:7 e Am 7:4).
g) Não há batalha, não há luta e não há resquícios destes elementos na criação de Gênesis. Deus cria tĕhōm (תְהוֹם), mar, abismo, águas. E Deus os faz a partir do nada.
Logo, aqui podemos eliminar a hipótese dos críticos envolvendo Tiamat e o termo tĕhōm (תְהוֹם).
El Ugarite, elohismo e javismo:
1) Hipótese documentária - Segundo a teoria, existiam textos aleatórios, soltos e redigidos em épocas diferentes e em meios diferentes que foram justapostos por sucessivos redatores. A teoria afirma que existiam fragmentos de textos que foram reagrupados e assim deram origem ao que hoje conhecemos como pentateuco.
2) Hipótese dos fragmentos - Segundo a teoria, vários fragmentos dos textos acima existiam e eram relatos descontinuados. Assim, compiladores de mitos os reuniram em períodos posteriores.
3) Hipótese dos complementos - Segundo a teoria, existia uma única narrativa contínua e, no curso dos séculos, tal trama recebia complementos e acréscimos (conf. Pury, "O Pentateuco em Questão", p. 23).
Resposta:
Todavia, estes documentos nunca foram vistos e nunca foram encontrados. Tudo não passa de meras conjecturas baseadas em textos isolados. A própria história da hipótese documentária fala que existiam textos descontinuados, isolados e fragmentados que teriam sido reagrupados no período pós-exílico e assim foi confeccionado hexateuco (eles incluem o livro de Juízes). No entanto, esses textos nunca sequer foram vistos, logo não passa de meras interpretações de textos isolados. Mas quais textos? Vejamos:
a) A morte de Moisés (Dt 34:6-12)- Moisés não poderia escrever sua própria morte;
b) "Naqueles tempos, os cananeus ainda viviam no país" (Gn 12:6, 13:7) - Dando a entender que o redator estava num tempo posterior aos fatos;
c) Transjordânia é chamada de "o país além do Jordão" (Gn 40:15) - Como isso pode ser feito se Moisés escreveu na Transjordânia? Assim dando a entender que o povo já estava na terra de Canaã;
d) Canaã é designada o país dos hebreus (Dt 3:14, 34:6).
e) "Antes que houvesse rei sobre Israel" (Gn 36:31) - Dando a entender que quando o autor concluiu a redação, existiam reis sobre Israel. Assim, Moisés não poderia ter escrito isso;
Em resposta a estes textos: o simples fato de tais fragmentos não existirem, já quebra por si só a hipótese documentária. O que se tem de fato são enxertos parentéticos que sem dúvidas passaram a fazer parte do texto afim de situar aos judeus pós-exílicos os tempos de tais acontecimentos. Houveram enxertos deuteronomistas? Sim. Houveram enxertos sacerdotais? Sim. Mas de forma parentética, isolados. Coisa simples. Não é possível pegar 2% de um texto e invalidar toda a história do texto por causa de 2%, sendo que esses enxertos possuem diversas explicações como "enxertos parentéticos" afim de esclarecer pro povo que saiu do cativeiro babilônico os acontecimentos passados. Isso era do estilo da época, dos escribas da época. Assim, a hipótese documentária começa a cair por aqui.
Elohismo e javismo:
1- Elohim não é nome próprio, virou epíteto.
a) Define divindades (Êx: 12:12 [todos os deuses]);
b) Espíritos de mortos (1 Sm);
c) Predicativo de pessoas poderosas, no caso Abraão (Gn 25:6).
Conf. Holladay 2010, p. 22.
Vamos entrar na questão propriamente dita. Primeiramente, todos os argumentos da hipótese documentária relacionados ao javismo e o elohismo caem por terra diante dos fatos históricos. Vejamos alguns fatos históricos que comprovam que o termo Javé, Jeová, Yahweh e dentre outros já existiam antes do deuteronomismo da suposta fonte da hipótese documentária:
A estala de Mesa (Séc. IX, 830 a.C): Mesa (rei moabita) e seu deus Quemós, vencem Omri, rei de Israel e seu Deus YHWH (Homer, 39). Isso quebra a teoria das duas fontes e prova que Israel era conhecido em tempos antigos e pré-exílicos pelo Deus que cultuava. A saber, YHWH. Lembremos que quem está dando este testemunho não é Israel, mas sim um rei moabita. Ou seja, isso significa dizer que era conhecido de todos naquela época (muito antes das chamadas "hipóteses documentárias") que o Deus de Israel era Jeová.
Estela de Merneptah, rei do Egito (Séc. XIII a.C): "Israel está assolada, sua semente, não" (ANET, 378, apud. Smith, 2006, p. 45). Isto apresenta Israel conhecido com notoriedade etnológica.
Já refutamos a hipótese documentária e a hipótese de Tiamat e Marduc. Agora vamos falar de El Ugarite:
El Ugarite (Síria, séc. XII - XIII a.C): Uma mera inscrição em ugarite, idioma cuneiforme diz: "O nome de meu filho Yw" (Homer, p. 44).
Este famigerado e longo texto ugarítico (ironia) teve equivalência a bíblia em Deuteronômio 32:8-9:
"Quando o Altíssimo distribuía as heranças às nações, quando dividia os filhos de Adão uns dos outros, estabeleceu os termos dos povos, conforme o número dos filhos de Israel.
Porque a porção do Senhor é o seu povo; Jacó é a parte da sua herança."
Texto em hebraico: בְּהַנְחֵל עֶלְיוֹן גּוֹיִם בְּהַפְרִידוֹ בְּנֵי אָדָם יַצֵּב גְּבֻלֹת עַמִּים לְמִסְפַּר בְּנֵי יִשְׂרָאֵל
כִּי חֵלֶק יְהֹוָה עַמּוֹ יַעֲקֹב חֶבֶל נַחֲלָתוֹ
Conforme o aparato crítico da Stuttgartensia, há uma variante que traz wyll (filhos de Deus). Com isso, os críticos dizem que aí se tem uma memória do antigo culto ao deus ugarítico El. Segundo eles, Yahweh é apresentado como um dos filhos de El, El Elyon.
Na verdade, o que temos aqui são formas apositivas de epítetos para o mesmo ser (conforme diz em Gênesis 14:22 - "Levantei minha mão ao Senhor (אֶל- יְהוָה), o Deus Altíssimo (עֶלְיוֹן אֵל)"). Do contrário, Javé seria filho de El, que seria filho de Elyon, conforme os três epítetos que ocorrem no texto de Deuteronômio citado acima. Confira Números 24:16:
"Fala aquele que ouviu as palavras de Deus (אִמְרֵי- אֵל), e o que sabe a ciência do Altíssimo (עֶלְיוֹן): o que viu a visão do Todo-poderoso (שַׁדַּי)".
Assim, os afixos sufixados aos nomes dos filhos de Israel não são memórias de um culto ao deus El do panteão ugarítico. São, na verdade, formas teofóricas de apresentar forças divinas aos que servem ao Deus Yahweh, o Deus de Israel. Quanto as formas abreviadas e alongadas em Yah e Yhwh, o que se tem é uma alteração (figura de estilo comum para tais efeitos).
Conforme Homer (2016, p. 38), ambas as expressões existiam bem antes do XIII séc. Assim, quando fazemos uma análise dos textos hebraicos, nem de longe encontramos uma referência ao deus El Ugarite.
Conclusão:
A hipótese documentária javista e elohista não se sustenta. Se quebrarmos a hipótese documentária (o que foi o que fizemos aqui), então quebramos a ideia do Deus Elohim que teria se tornado Jeová e que teria sido copiado de El Ugarite. Segundo, Tiamat e Marduc não tem absolutamente nada a ver com o bereshit (בְּרֵאשִׁית) de Gênesis 1:1. Terceiro, El Ugarite não encontra disposição filológica dentro das interpretações hebraicas. O único mito que temos aqui, é o mito inventado pelo método histórico-crítico. Foram os críticos quem criaram o mito acadêmico de que Jeová seria uma farsa sumeriana.
Trecho retirado da live da liga teísta:
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